Em tempos de quarentena: Estado de Emergência
O primeiro estado de
emergência em Portugal foi decretado no dia 19 de março de 2020, devido à pandemia
(covid-19). O último evento presencial realizado pela In-Finita foi no dia 10
de março no Zénite Bar Galeria. Era mais uma terça de Leituras de A a Zénite, e
diferente de todos os nossos encontros não apareceu ninguém. O nosso último
lançamento de livros havia acontecido no sábado anterior, dia 7, em Sesimbra, apesar
do alcool gel na entrada da biblioteca, covid 19 era um vírus que parecia estar
ainda muito longe de nós, e que ficaria lá, na China, pois já começavam as
primeiras movimentações para evitar o seu contágio, no lado de cá.
Hoje, relembrando situações
passadas, lembro de ouvir comentários entre nossos autores e leitores, nos
nossos saraus, de uma gripe estranha, ainda em janeiro, que tinha deixado muita
gente de cama, em um estado que jamais tinha sentido. Eu mesma fui vítima dessa
“gripe muito forte” que me deixou com febre, dores no corpo e muita falta de
ar, por mais de quinze dias, e o médico até brincou, perguntando se eu tinha
tido contacto com algum chinês, me receitou umas vitaminas, paracetamol e um
remédio para asma (e eu nunca tive asma, no máximo uma renite), mal sabia, que
aquela nossa brincadeira, seria a anunciação de uma coisa muito pior, que
estava chegando, silenciosamente.
Nos primeiros dez dias,
era uma sensação estranha, de incerteza, questionamentos, mas havia aquela
esperança de que “isso passa rápido” se nos cuidarmos. Até confesso, que estava
gostando de uns dias em casa, para organizar a vida, tão cheia de eventos e
trabalho nos últimos dois anos, que mal tinha tempo para ver um filme. Estávamos
sempre em saraus, tertúlias, lançamentos de livros, e outros eventos, realizados
por nós (In-Finita) ou prestigiando parceiros ou amigos. Além das revisões,
captações, organizações de livros e divulgação dos autores. Os primeiros oito
dias foram intenso, cancelando eventos, conversando com autores, adiando
projectos... depois veio aquela sensação de ufa! Vou desconectar e arrumar o
armário, ler um livro, assistir ao meu seriado favorito... caminhar no parque
próximo e dar atenção aos amigos e à família que há tempos andavam recebendo mensagens
rápidas e sem muitas conversas.
Após o terceiro estado de
emergência (19 de abril a 2 de maio) toda aquela novidade inicial, pensamentos
sobre como devemos estar ou seguir após esse grito de uma humanidade e um
planeta doentes, e de ter criado um evento para que as pessoas trocassem ideias
e impressões sobre esse momento tão atípico, escorreguei para um estado de
impotência ao ver todo o trabalho adiado para tempos indeterminados. Não ia
passar rápido. E esse choque de realidade, acompanhando o crescente aumento do vírus
em todo o mundo e suas consequências, me sabotei.
Enquanto havia sol e
calor, as caminhadas pelo parque permaneciam, e emagreci seis quilos. Estava
feliz com o objetivo alcançado, por tantas vezes adiado. Parênteses: ao chegar
em terras lusas e com a mudança de rotinas, engordei em dois anos 10 quilos.
Só que depois, as férias,
com aquele calor extremo e estar perto do mar, era quase um desejo inalcansável,
por respeito a tudo o que estava ao meu redor e por precaução. E eu precisava
preencher esse tempo enquanto a vida passava pela janela ou pelos ecrâs.
E começou a frustração de
querer e não poder e ao mesmo tempo, um combate interno, de que era necessário
rever antigos conceitos, buscar novos entendimentos e formas de estar na vida,
de trabalhar de interagir.
O tempo estava passando,
os trabalhos já em andamento estavam começando a chegar ao final, os projetos
já agendados, adiados e pouca coisa a fazer. Os armários já estavam arrumados,
muitos livros lidos, filmes e seriados vistos, e era preciso ir contra tudo o
que acreditei e começar a mudar o meu discurso desde o início do milênio: “Saiam
de casa, saiam da internet, e participe dos nossos saraus, tertúlias e eventos,
venham trocar ideias, conversar, tomar um café bem quente, isso claro, sempre
entre abraços e sorrisos”.
Como fazer isso? Logo eu
que usava o mínimo das redes sociais, por falta de paciência em me aprofundar
mais, sempre preferi a conversa e o olho no olho. Aí veio uma avalanche, toda a
gente fazia leituras, divulgando autores, livros e poesias, todo o mundo fazia
lives e vídeos, e eu que me profissionalizei e criei uma empresa para isso,
comecei a me retrair. Nem vou entrar nas observações críticas de coisas que vi
(fica para uma próxima crônica). Apenas recuei e por alguns dias, longe das
redes sociais, desconstruí mundos dentro de mim.
A vontade era de ter
férias permanentes, sentia-me cansada e desanimada e ao mesmo tempo a vida
empurrava- me para a frente, por obrigação, necessidade e sobrevivência
emocional. Mergulhei em conversas com a minha filha de uma geração criada para uma pandemia, tal o
domínio em tudo o que envolve tecnologia, plataformas virtuais e redes sociais,
aprendi, aceitei, acima de tudo, compreendi e me recriei. Doeu ver meus cacos
espalhados pelo tempo que não volta mais, e aceitar a minha imagem em um vídeo disponibilizado
para o mundo (sempre fui resistente a exposição e abandonei a faculdade na aula
que eu tinha que vir para a frente das câmeras), mas enfim, criei um canal no
YouTube, aprendi a diferença entre live, vídeo, podcast e outros termos tão distantes
de mim, conheci diversas possibilidades de eventos virtuais e me aventurei. A
parceria no Palácio Baldaya virou também virtual e juntos fomos aprendendo uma
nova forma de interagir.
E entre lives e vídeos,
com o apoio e acolhimento de tanta gente, comecei a me sentir mais confortável
nesse novo mundo. Ouvia termos, “como novo normal”, mas nunca o aceitei, Isso
não é normal, pode ser prático, dinâmico, ter um imenso poder de divulgação,
mas não me façam dizer que é um “novo normal”.
Os nossos saraus,
leituras, entrevistas eram uma forma de estar presente, de sentir que as
pessoas ainda estavam ali, receptivas, envolvidas em um abraço, mesmo que
distante. E esse distanciamento trouxe tanta gente boa para perto, não tínhamos
mais limites ou frontreiras, pessoas do Brasil, de diversos países na Europa e
na África, Estados Unidos, estavam ali, ao meu lado, dividindo a mesma tela,
trocando ideias, divulgando seus pensamentos e trabalhos, mas o melhor de tudo
isso, nos bastidores, trocávamos afeto, solidariedade, cumplicidade. Somos
todos feitos do mesmo ADN (DNA) e por mais que o mundo esteja despertando para
o pior, mais violência, mais contestações, mais racismo, mais fome, mais
desemprego, mais doenças, mais ganância, mais luta ao poder, ainda temos tanta gente
de coração e alma altruístas, com uma força de resiliência e superação, de um
amor universal, de uma fraternidade que me emociona imensamente.
Antes eu já era uma pessoa
extremamanete sucetível às lágrimas, de origens diversas, mas agora estou ainda
mais à flor da pele, e tudo me toca e me faz sentir parte integrante desse todo,
que pede socorro. O Encontro Virtual, do Mulherio das Letras Portugal, foi
realizado em tempo recorde, em dois meses, mais de trezentas mulheres foram contactadas, criámos
cards, divulgámos, e tivemos 4 dias maravilhosos com todas as possibilidades
literárias, musicais e artísticas realizados por mulheres de todos os cantos. Mais
de 144 mil vizualizações, milhares de comentários, curtidas e mensagens. Quatro
dias praticamente sem dormir e comer, uma mistura de satisfação,
responsabilidade, aconchego e alegria. E muito aprendizado. Era final de
setembro. No dia seguinte, ainda com coisas a fazer, uma perda repentina, me
deu um empurrão para os momentos mais difíceis da vida, não ter mais a presença
de alguém com quem partilhámos a nossa história.
As folhas começaram a cair, os ventos gelados a soprar, e com o outono, a constatação de que eu estava no limite do estresse. Já havia recuperado os seis quilos e engordado mais quatro, e comecei a só desejar ficar embaixo das cobertas, comendo meus chocolates, vendo filmes e séries para a cabeça não pensar. Difícil separar a rotina, pequenas alegrias, superação e conquistas, aprender a lidar com projetos, desejos, perspectivas e objetivos cancelados ou adiados e também ver tanta gente sentindo dor, seja de que forma for, em dificuldades financeiras ou sociais, além de tantas perdas... tão próximas ou distantes de nós.
E de repente, o ar faltou...
a dor tomou conta do peito, das costas, uma queimação crescente subindo pela
garganta. Chamei o 112, a minha
madrugada foi invadida por duas paramédicas e lá fui tentando me acalmar e
respirar, enquanto as luzes da âmbulância iluminavam a rua por onde passava.
Adriana Mayrinck
27 de outubro de 2020
foto:
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